sábado, 28 de maio de 2011

Na Montra

Recensão semanal a discos recentes.


Ben Harper – Give Till It’s Gone
Admitia vir a plantar couves, tornar-me num jogador de poker ou fazer uma grande travessia de vela. Mas nunca me passou pela cabeça vir a prestar vassalagem a um disco de Ben Harper.

"Give Till It’s Gone" mudou tudo. Ao longo destes muitos anos, Ben Harper tem-se mostrado como um músico culto, talentoso, multifacetado, mas também aborrecido, abafado por uma estranha banalidade... Era, em potência, um Marvin Gaye rockeiro que na prática dava tão pouco entusiasmo quanto um Eagle Eye Cherry. E esse vinha sendo um enigma difícil de entender.

Reflexo assumido de uma temporada turbulenta marcado pelo divórcio litigioso com a actriz Laura Dern, "Give Till It's Gone" é para Ben Harper o disco que mais se assemelha a um cronograma. Para nós, esta é uma obra de um soulman recomendável aos fãs do indie rock de bandas como os Soundgarden.

Também se NeilYounguizou e deu alma soul a um cenário instrumental armadilhado de blues-rock. O rock é agora temperamental, feito à flor da pele, mas com gritos de desabafo que, lirica e filosificamente, evocam o gospel - na esperança que o Senhor acorra em prol do músico atormentado.

Noutras canções, Ben Harper repousa na soul contemplativa, num registo mais folk e em breves jazzísticos aquando da soltura instrumental… No final, chegamos à conclusão que estamos perante um dos grandes álbuns do ano. Big Ben fez bang, finalmente.

Partes do texto são retirados de artigo assinado para o Cotonete.


Wild Beasts - Smother
Do magistral "Two Dancers" (já um clássico do indie rock britânico do século XXI), transitou muita coisa, sobretudo a atmosfera perturbadora assente num cocktail de várias fontes do pop-rock milagreiro – de Smiths a Radiohead a Jeff Buckley. Menos acutilante é o acompanhamento do carisma que reconhecíamos em cada canção de "Two Dancers". Bom esforço, ainda assim.



GP

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Polly valente


O vulcão islandês ainda me fez temer que a relação ausente entre Polly Jean Harvey e os palcos lisboetas se tornasse num bruxedo, depois de há 10 anos uma faringite ter originado o cancelamento de um concerto seu no Coliseu dos Recreios. Mas, felizmente, Polly & co não iam apanhar um dos muitos voos cancelados por essa fumarada nórdica que provoca autênticas dores de cabeça aos promotores ao vivo.

A sofreguidão por a ver numa sala fechada foi sendo abafada serenamente por um concerto lúcido e competente, comandado por alguém que não sabe tomar más decisões. A banda é do melhor que existe – além dos velhos conhecidos Mick Harvey e John Parish (ambos de cabedal multi-instrumentista), foi um prazer descobrir o baterista Jean-Marc Butty (de cabedal multirrítmico). Este é um tipo de concerto cujas valias fazem esquecer a urgência de ouvir os grandes temas de PJ. Não era preciso pedir um 'Man Size' ou um 'Down by the Water', quando o que se impunha era a eloquência da nova fornada folk-rock (ou lá o que isso possa ser) vinda do fenomenal álbum "Let England Shake", que alguma da plateia estava ainda a examinar até à concludente e consensual ovação.

PJ Harvey, com um talento camaleónico de um Dylan ou de um Bowie, foi sempre encarnando um modelo diferente a cada álbum. E o deste último dá-nos uma artista mais recatada em palco, com adereços de um guarda-roupa que fazem dela uma mulher-pássaro, incluindo um penacho que origina as mais belas sombras que as paredes da Aula Magna já conheceram, além de uma instrumentação mais folk, incluindo a utilização da auto-harpa e a maior recorrência à guitarra acústica. Talvez não arrase como aquela rocker semi-despida e mais carnal dos tempos de "Stories from the City (...)" e de "Uh Huh Her". Mas volta a levar a água ao seu moinho com um outro modo, mesmo que mais indirecto.

Passou revista por todos os álbuns de originais até 1995 ("To Bring You My Love"), do qual tocou o bluesy 'C'mon Billy'. Nas breves viagens ao passado, só deu um pouco maior de ênfase a "Is This Desire?". No único encore, o eléctrico 'Big Exit' foi a mola espiritual que levantou toda a sala (excepto as doutorais, claro). PJ Harvey foi sempre de poucas palavras e nos intervalos fazia pequenos périplos para o fundo, confundindo-se com a escuridão de trás. Mas no final, no momento de agradecimento, aquele sorriso disse tudo.

Aquela hora e meia soube a pouco e esse é o elogio telegráfico que melhor pode aferir tudo o que se passou. Hoje há mais, para outros tantos sortudos.

GP

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Está quase - parte 2


E a respeito de Chicago, Sufjan Stevens lembrou-se disto: uma das mais belas canções de sempre. E aqui 'sempre' não quer dizer dos últimos dois anos: estamos a contar com ciclos de canções de Wagner, toda a espécie de rugidos pré-históricos e melodias apalaches para embalar bebés com histórias sanguinolentas. Aplicar desconto de voz cansada.



GF

Está quase - parte 1


John Wayne Gacy é dos mais famosos serial killers que pisou as terras dos Estados Unidos. No seu disco dedicado ao estado do Illinois, Sufjan Stevens - que vamos ter por cá a 30 e 31, Coliseus de Porto e Lisboa - pega na história de uma das figuras mais odiadas da cultura norte-americana e faz uma das músicas mais belas de que uma pessoa se pode lembrar. E é melhor do que Charles Manson em registo autobiográfico.



GF

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Prazer Culposo


UHF, o careca guedelhudo e a sua banda

Em primeiro lugar, os UHF nunca deveriam estar nesta rubrica – na verdade, nenhum artista de que goste merecia estar aqui. Porém, cada simples e tímido avanço retórico na defesa da banda de António Manuel Ribeiro é de tal forma esmagado por uma maré humana indignada, que sou obrigado a retroceder para uma simulada concordância naquele momento, só por uma questão de sobrevivência – ou de cobardia. Ao fim destes anos todos e depois da história que os UHF fizeram, denunciar qualquer simpatia por eles tem o mesmo efeito social que a confissão de um assalto a um banco. E por vezes, num momento de feliz suicídio de credibilidade, vou mais longe nas minhas convicções UHFenses – como que a dizer que sou assaltante de bancos com todo o gosto, como que a ser definitivamente remetido para aquele grupo de pessoas que usa fio dourado com o crucifixo fora da camisa só porque tenho despudor em nutrir algum tipo de admiração pelos UHF.

Tento restringir-me à defesa da relevância histórica do álbum de estreia "À Flor da Pele" ou do single 'Cavalos de Corrida', mas nem esse argumento convence os meus convivas daquele momento. O mais assustador é que o desdém é geral: fãs de música, jornalista e mesmo músicos. É assustador para os UHF. E é assustador para mim, que vejo o que ninguém vê – ou que não vejo o que todos os outros vêem. E o que será o que eu não vejo que os outros vêem?



Vou então tentar perceber o impossível… É verdade que houve um ricochete da mesma fórmula vencedora dos UHF noutras melodias e em álbuns subsequentes, criando-se um vício de estilo – isto é, em português directo, «as músicas soam todas iguais». O arrastamento saldou-se noutro ricochete, o do cepticismo, que ganha uma força retroactiva que vai, implacável e sem travões de justiça, até aos primeiros tempos dos UHF, destroçando-os.

Se descontarmos os tempos mais artesanais do rock dos anos 60, em que, salvo honrosas excepções, se brincava aos Beatles, a primeira visão de rock moderno português teve na primeira frente de batalha os UHF que, como em todos os combates militares, é a que mais ferimentos leva. E o inimigo era a nossa habitual falta de auto-estima que ridicularizava quem cantava um Portugal com novos códigos e que ligava o que parecia uma afronta: a língua de Camões encaixada num modelo sonoro anglo-saxónico. Talvez os UHF estejam ainda a pagar essa factura, a somar a outras.



E quem raio é que se poderia lembrar de representar com orgulho um subúrbio feio como a Amadora ou Sacavém? Os UHF também foram pioneiros nisso, embelezando a fealdade do que os rodeava e chamando orgulhosamente a atenção para Almada com um som muitas vezes pejorativa e sarcasticamente chamado de Doors à portuguesa (embora isso também deva ser tomado como um elogio), actualizado por um som de guerrilha pós-punk, com letras e mensagens que aquele Portugal de 79-81 precisava urgentemente de ouvir.

Fundaram o conceito de banda rock profissionalizada, com uma máquina de turné que a nossa escala não conhecia. Se lá fora havia Police, cá dentro havia UHF – não me parecia que ficássemos mal na fotografia. Aos meus olhos de criança, eles pareciam ser o topo do que havia em Portugal. E apareciam em todo o lado, incluindo na TV, sendo o motor de conteúdos de programas como o Vivamúsica. Estavam em grande, portanto.



De repente, desapareceram. E os heróis da nossa pop-rock passarem a ser outros, do Mar, de Pedro Ayres Magalhães & co. E depois outros. Apanhei-lhes o rasto bem mais tarde, através de um título de notícia num jornal que falava dos vários acidente de viação que, calculo, tenham prejudicado a dinâmica da banda. O renascimento dos UHF foi sendo feito com a obstinação de António Manuel Ribeiro, contra as várias desistências internas, contra a desmobilização de muito do seu potencial público para outras bandas, e às vezes contra si mesmo e contra a sua própria desinspiração, em momentos às vezes penosos como a versão demasiado elementar do popular Menina Estás à Janela. Basicamente, António Manuel Ribeiro foi levantando os UHF contra tudo.

Aqueles que eram filosoficamente os nossos Doors e conjunturalmente os nossos Police, passaram a ser funcionalmente uma espécie de Cure. Os UHF passaram ter como único fundador resistente António Manuel Ribeiro, os Cure Robert Smith. Líder e banda passaram a confundir-se. E os UHF tornaram-se uma caricatura, demasiado ao alcance dos seus detractores.



Sem grande apreço da comunidade dos músicos, sem nenhum sucesso galopante que o começo da história poderia adivinhar, António Manuel Ribeiro passou a acreditar naquilo sozinho – e, no fundo, eu também –, como um verdadeiro diabo à solta. E tem-no feito condignamente, mesmo que isso mereça o desprezo do mundo.



GP

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Olhó gelado fresquinho... e batalhador


O vídeo é uma pequena delícia - e não, não estamos apenas a falar do título ('Ice Cream'). Fazedores daquela pop em que as máquinas até parecem sensíveis de que só a Warp nos dá conta, os Battles juntaram-se aqui a Matias Aguayo. O álbum, Gloss Drop, chega a 6 de Junho. Até lá é ir ouvindo (e vendo) 'Ice Cream'. Agora, lá porque o vídeo é uma delícia e os dias já aqueceram sobremaneira, nada de lamber o ecrã, sim?



GF

sábado, 14 de maio de 2011

Le Mystère des Voix Bulgares


Quinzena Temática – produtos da Bulgária em destaque

Este super-colectivo búlgaro, que já leva várias gerações, não precisa de esperar por reconhecimentos oficiais da UNESCO para ser reconhecido como um património oral e imaterial da humanidade.
Já tinham mais de trinta anos de vida quando encaixaram às mil maravilhas no desenho utópico pop da 4AD, nos idos anos 80, após Peter Murphy (que se destacou como vocalista dos Bauhaus) ter emprestado uma cassete desta polifonia folk ao editor Ivo Watts-Russell, que se comoveu com o que ouviu.
Antes, tinham sido muito trabalhadas pelo etnólogo suíço Marcel Cellier.
A música das Vozes Búlgaras é uma rampa de lançamento para uma viagem mental aos tempos ancestrais. E assume-se como a defesa da voz como o mais precioso instrumento do mundo. Quase que não é preciso mais nada.



GP

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Não desprezar a primeira parte


Nos concertos nacionais desses deprimidos amadores chamados The National, convém não chegar atrasado, ir beber copos para o bar ou cumprimentar demasiados amigos à entrada da sala. E isto porque a primeira parte é assegurada por gente que, com licença, interessa mais do que os National propriamente ditos. Os Dark Dark Dark fazem aquilo a que eles mesmos chamam "chamber folk" e cada canção que lhes sai do banjo e do acordeão é um mimo. Pontualidade, por favor.



GF

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A guerrilha da paz


Há 30 anos deixou-nos, num hospital de Miami – num recurso estafado ao facto do dia. Dois antes ocupou um dos locais da «Babilónia», em Santa Barbara (Califórnia), com mais um concerto memorável, quando os Estados Unidos se rendiam ao talento jamaicano.



GP

sábado, 7 de maio de 2011

Na Montra

Recensão semanal a discos recentes.


Beastie Boys - Hot Sauce Committee Part Two
A telepatia única entre os três bros dos Beasties está para durar. Continuam uns garotos. E nem sequer precisaram de mudar muito os seus procedimentos naquele hip hop contagiante e funky. Está lá o mesmo rap a velocidade de foguetão; a habitual intervenção do homem-robot naquele triângulo vocal; a carregada artilharia de samples; o pontual número de putos garageiros a fazer punk-hardcore; aqueles instrumentais que sugerem aquilo que deveria ser a música de elevador; a arte de converter o assunto mundano e a competição de narcisismos num rap contagiante; e o frenesim de Nova Iorque como cenário.

O grandioso património musical dos Beastie Boys impede que a metodologia recorrente se transforme numa insipidez rotineira, a que acresce o picante diferenciador das intervenções convidadas: Nas mete a colherada em 'Too Many Rappers'; Santigold contracena com os Beasties na frequência afrobeat de 'Don't Play No Game That I Can't Win'.

A poderosa festa de "Hot Sauce Committee Part Two" faz esquecer o drama que tem envolvido Adam Yauch que, ainda a tratar de um cancro nas glândulas salivares, obrigou os Beasties a uma troca de planos e a um adiamento sucessivo da edição do sétimo álbum de estúdio. Mas nada pára o grupo.

Texto baseado em artigo assinado para o Cotonete.


Os Lábios - Morde-Me a Alma
Não é muito comum no indie rock nacional aparecer uma banda de sensibilidade pop tão apurada, e de coros tão orelhudos como estes debutantes Lábios. Produzidos por Miguel Ângelo e herdeiros da mesma formação dos Profilers (de orientação mais bluesy, e de língua inglesa de escolha), têm um optimismo e uma sofreguidão rockeira que os torna nos mais directos representantes em Portugal da sonoridade new waver dos Blondie e dos Altered Images. Eis um bom caso de uma banda pop-rock que sabe o que quer das canções e o que as canções querem dela. Tudo escorreito, sem quaisquer rodriguinhos ou delongas, directo ao ponto.




Low - C'mon
Começaram como fundamentalistas do slow-core em "I Could Live in Hope" (de 1994): radicalmente vagarosos, minimalistas, claustrofóbicos, perturbadores. Depois, foram superando a idade média de uma banda rock com o alargamento moderado de outras opções: mais instrumentos, e até aventura conceituais diferentes como no mais eléctrico e veloz "The Great Destroyer" (de 2005). Actualmente, acusam algum desgaste com atributos (como as bela harmonias vocais entre o casal fundador Alan Sparhawk e Mimi Parker) que começam a descolorar, sobressaindo agora uma sensação de redundância. Terá que ser a queda irreversível?




Fleet Foxes – Helplessness Blues
Fascinaram meio-mundo indie como uma espécie de Beach Boys do bosque, através do fascinante álbum de estreia homónimo. Mas ao segundo álbum, o grupo liderado por Robin Pecknold apresenta sintomas avançados de Eaglite: um vírus que vulgariza bandas de folk-rock até ao nível do aborrecimento e que está a disseminar, por exemplo, os Band of Horses (abençoados igualmente por uma estreia de arromba antes da contaminação). Há aqui uns quantos 'Hotel California', mesmo que actualizados num cenário mais indie.

O curioso é que quando o grupo se afasta das guitarras eléctricas e se foca em harmonias vocais folk mais ancestrais, uma magia deslumbrante se instala, quase nos levando a perder a cabeça por um disco que é tudo menos grande.



GP

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Deixem-se estar, por favor


Bono, sempre no papel de melómano benemérito, focou desta vez a omnipotência do seu megafone no desejo da publicação de novas canções pelos Pixies. O simpático pedido sensibilizou, pelo menos, o guitarista Joey Santiago que fala com entusiasmo da hipótese e na concretização da mesma.

Os Pixies, tal como os Violent Femmes há tempos, têm-se conformado com o papel de empresa ao vivo de emoções nostálgicas, uma espécie de actividade intermitente mas muito bem remunerada. Tem sido penoso vê-los: inchados, de ar careta, mesmo que bonacheirões. Os concertos, que quase sempre correm bem, são o público que os faz, perante uns Pixies mais mumificados do que aqueles que, com cabelo, em tempos idos fizeram história.

Seis anos de trabalho consecutivo (entre 1986 e 1992) e de alguma conflituosidade geraram uma discografia de respeito e imaculada, terminada em boa hora, numa antecipação distante à decadência. Deram-nos uma ilusão de sobre-humanos. Sabemos que não o são e o trabalho subsequente foi-nos provando que também eles têm as suas falhas. Mas não manchem o que está ainda dourado.



GP