quarta-feira, 30 de março de 2011

Eu estava lá, eu estava lá


Foi ontem. E foi tão assombroso quanto se adivinhava. Nas mãos de Ricardo Rocha, a guitarra portuguesa cresce para além das suas limitações físicas e técnicas, torna-se um instrumento quase capaz de ombrear com o piano enquanto veículo da criação contemporânea mais arrojada. Aquilo que se ouviu foi uma vergastada contínua, Ricardo Rocha a torturar brilhantemente a guitarra que tanto o tortura, a exigir-lhe de volta aquilo que ele lhe dá, a frustrar-se admiravelmente com o instrumento que lhe coube em sorte.

Ricardo Rocha diz que foi o último. E terminou a noite, manco, contorcido, dorido da intensidade arrepiante com que silenciou a sala do Maria Matos durante hora e meia ou lá quanto foi - mas quem é que olhou para o relógio? Despediu-se agradecendo a 'paciência' de quem estava ali e admitindo que o concerto lhe tinha corrido muito mal (o que, já aprendemos, costuma ser inversamente proporcional ao entendimento popular). No entanto, nas sucessivas espirais de obsessão que são as suas músicas, estreou uma nova peça. Ele que dizia que nunca mais iria compor uma só nota. Pode ser que também não cumpra a sua promessa de não mais tocar em público. Mais do que uma pena, seria algo próximo da catástrofe.

Ainda tenho os músculos feitos pedra, receosos que estavam de que o mais pequeno movimento desmoronasse aquela música de génio visceral e torcido. Em palco lembrava Glenn Gould, ouvia-se-lhe a voz a entoar notas num transe lá seu, a que não temos completamente acesso - mas o suficiente para a realidade também ficar momentaneamente presa numa teia de aranha, impedida de entrar na sala.

Antecipadamente, um dos concertos do ano. Mais do que isso até, um dos concertos da vida. Um prodígio de talento ao serviço de música tão alta quanto pode subir. Obrigado, Ricardo. Volta sempre.

GF

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