quarta-feira, 18 de maio de 2011

Prazer Culposo


UHF, o careca guedelhudo e a sua banda

Em primeiro lugar, os UHF nunca deveriam estar nesta rubrica – na verdade, nenhum artista de que goste merecia estar aqui. Porém, cada simples e tímido avanço retórico na defesa da banda de António Manuel Ribeiro é de tal forma esmagado por uma maré humana indignada, que sou obrigado a retroceder para uma simulada concordância naquele momento, só por uma questão de sobrevivência – ou de cobardia. Ao fim destes anos todos e depois da história que os UHF fizeram, denunciar qualquer simpatia por eles tem o mesmo efeito social que a confissão de um assalto a um banco. E por vezes, num momento de feliz suicídio de credibilidade, vou mais longe nas minhas convicções UHFenses – como que a dizer que sou assaltante de bancos com todo o gosto, como que a ser definitivamente remetido para aquele grupo de pessoas que usa fio dourado com o crucifixo fora da camisa só porque tenho despudor em nutrir algum tipo de admiração pelos UHF.

Tento restringir-me à defesa da relevância histórica do álbum de estreia "À Flor da Pele" ou do single 'Cavalos de Corrida', mas nem esse argumento convence os meus convivas daquele momento. O mais assustador é que o desdém é geral: fãs de música, jornalista e mesmo músicos. É assustador para os UHF. E é assustador para mim, que vejo o que ninguém vê – ou que não vejo o que todos os outros vêem. E o que será o que eu não vejo que os outros vêem?



Vou então tentar perceber o impossível… É verdade que houve um ricochete da mesma fórmula vencedora dos UHF noutras melodias e em álbuns subsequentes, criando-se um vício de estilo – isto é, em português directo, «as músicas soam todas iguais». O arrastamento saldou-se noutro ricochete, o do cepticismo, que ganha uma força retroactiva que vai, implacável e sem travões de justiça, até aos primeiros tempos dos UHF, destroçando-os.

Se descontarmos os tempos mais artesanais do rock dos anos 60, em que, salvo honrosas excepções, se brincava aos Beatles, a primeira visão de rock moderno português teve na primeira frente de batalha os UHF que, como em todos os combates militares, é a que mais ferimentos leva. E o inimigo era a nossa habitual falta de auto-estima que ridicularizava quem cantava um Portugal com novos códigos e que ligava o que parecia uma afronta: a língua de Camões encaixada num modelo sonoro anglo-saxónico. Talvez os UHF estejam ainda a pagar essa factura, a somar a outras.



E quem raio é que se poderia lembrar de representar com orgulho um subúrbio feio como a Amadora ou Sacavém? Os UHF também foram pioneiros nisso, embelezando a fealdade do que os rodeava e chamando orgulhosamente a atenção para Almada com um som muitas vezes pejorativa e sarcasticamente chamado de Doors à portuguesa (embora isso também deva ser tomado como um elogio), actualizado por um som de guerrilha pós-punk, com letras e mensagens que aquele Portugal de 79-81 precisava urgentemente de ouvir.

Fundaram o conceito de banda rock profissionalizada, com uma máquina de turné que a nossa escala não conhecia. Se lá fora havia Police, cá dentro havia UHF – não me parecia que ficássemos mal na fotografia. Aos meus olhos de criança, eles pareciam ser o topo do que havia em Portugal. E apareciam em todo o lado, incluindo na TV, sendo o motor de conteúdos de programas como o Vivamúsica. Estavam em grande, portanto.



De repente, desapareceram. E os heróis da nossa pop-rock passarem a ser outros, do Mar, de Pedro Ayres Magalhães & co. E depois outros. Apanhei-lhes o rasto bem mais tarde, através de um título de notícia num jornal que falava dos vários acidente de viação que, calculo, tenham prejudicado a dinâmica da banda. O renascimento dos UHF foi sendo feito com a obstinação de António Manuel Ribeiro, contra as várias desistências internas, contra a desmobilização de muito do seu potencial público para outras bandas, e às vezes contra si mesmo e contra a sua própria desinspiração, em momentos às vezes penosos como a versão demasiado elementar do popular Menina Estás à Janela. Basicamente, António Manuel Ribeiro foi levantando os UHF contra tudo.

Aqueles que eram filosoficamente os nossos Doors e conjunturalmente os nossos Police, passaram a ser funcionalmente uma espécie de Cure. Os UHF passaram ter como único fundador resistente António Manuel Ribeiro, os Cure Robert Smith. Líder e banda passaram a confundir-se. E os UHF tornaram-se uma caricatura, demasiado ao alcance dos seus detractores.



Sem grande apreço da comunidade dos músicos, sem nenhum sucesso galopante que o começo da história poderia adivinhar, António Manuel Ribeiro passou a acreditar naquilo sozinho – e, no fundo, eu também –, como um verdadeiro diabo à solta. E tem-no feito condignamente, mesmo que isso mereça o desprezo do mundo.



GP

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