segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Simpático, docinho e quase Disney


A tentação primeira é olhar Somewhere à luz de Lost in Translation. E os pontos de contacto são tantos e tão evidentes que é uma tentação quase irresistível. Mas vale a pena resistir-lhe. Porque Somewhere merece ser visto isoladamente. É claro que confirma Sofia Coppola como uma exímia cineasta da melancolia, capaz de nos instalar sucessivos sentimentos de nostalgia muitas vezes de situações que nos são alheias. Verdade.

Mas se Lost in Translation era sobretudo um filme sobre a doce memória da não-consumação, de algo intenso (não necessariamente amoroso, que isso seria banalizar excessivamente o filme) com fim anunciado, da felicidade triste daquilo que fica em suspenso nas nossas vidas, Somewhere não é nada disso. Aqui, a relação a dois é a descoberta entre pai e filha, um encontro quando, de certa forma, estão os dois sozinhos, um actor indiferente ao mundo que o rodeia à excepção dos estímulos sexuais e alcoólicos, e uma miúda que inesperadamente o obrigado a ser pai numa altura em que também a mãe reclama o seu direito à crise existencial.

A cumplicidade desenvolvida entre pai e filha, através das lentes da menina Coppola, é coisa tocante, sublimemente filmada, naquele seu desaceleramento cinematográfico que deixa as imagens pairarem graciosamente à nossa frente, mas que exagera na sua trajectória. Que o surgimento da filha ponha o pai em riste, isso percebe-se e seduz, mas a regeneração total que o filme sugere no final excede em muito o ponto de chegada ideal. Se bem que haja uma leitura simbólica evidente a retirar - o carro às voltas sem sentido no início transforma-se no carro abandonado final -, a sua leitura mais literal, a do abandono total rumo a uma vida nova, mata em parte a construção emocional lentamente erigida durante o filme. É uma facada nas costas e faz de Somewhere um filme simpático e docinho e quase a roçar a Disney nos últimos minutos, mas poderia ter sido muito mais do que isso.

GF

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